Faz tempo, né? Há quem diga que mais tempo do que deveria 🥲
Os meses foram passando, se transformaram em anos, e o mundo do Cordel Sideral ficou fechado para visitantes. Mas quem de nós poderá dizer que ele não continua a existir, além dos olhos e do toque? Pois continua, sim. Cheio de vida e vibrante. E, lá, histórias novas surgiram, personagens decidiram novos rumos, antigos mistérios foram solucionados… só para dar lugar a novos. Entre o ontem e o hoje, o Cordel Sideral continua tão vivo quanto o futuro.
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Há algumas histórias que escrevi nos últimos anos e nunca enviei a você, seja porque não foram publicadas, seja porque eram recompensas às pessoas que nos apoiaram na campanha do Catarse. Agora, terminado o período de exclusividade, achei que seria legal dar um oi e dividir com o mundo uma dessas histórias, sobre a qual você pode ler tudo abaixo.
Espero que você goste e, se gostar, que compartilhe com outras pessoas. Em um futuro breve enviarei mais histórias. Por ora, ficamos aqui.
Obrigado por ler!
Sobre o conto
Este conto é um experimento. Ele busca ultrapassar os limites do universo já estabelecido do Cordel, rompendo com o ritmo e o estilo narrativo de obras como O Pescador de Memórias (nossa primeira temporada) e as anedotas, quase sempre bem-humoradas, contadas nas redes sociais do projeto. É importante que você entenda isso, antes de se embrenhar na história de Wesley-3B.
A narrativa de O robô que lembrava demais dialoga com as duas faces opostas da vida — a morte e a esperança —, buscando construir uma ponte entre as duas, que o personagem principal atravessa em sua tentativa de se redimir. A jornada solitária, dolorosa e repleta de dúvidas empreendida por Wesley-3B nos oferece inúmeras oportunidades de reflexão a respeito da forma como tratamos os outros e, principalmente, como tratamos a nós mesmos.
Muitas dessas reflexões não serão fáceis, mas asseguro que serão todas necessárias: ao mergulharmos nos dilemas do personagem principal, é provável que vejamos ali muito da forma como lidamos com nossas próprias angústias e como deixamos que outros lidem com elas.
Como lembra a célebre e puída frase do existencialista Jean-Paul Sartre, “não importa o que a vida fez de nós, mas o que nós fazemos com o que a vida fez de nós”. Isso é, obviamente, mais fácil falar do que fazer — mas vale tentar.
O robô que lembrava demais
01
A mão esquerda da escuridão não é a mesma que balança o berço. Elas são mãos diferentes, feitas para trabalhos distintos. De vez em quando, no entanto, acabam se tornando a mesma coisa. O berço em chamas e o quarto avermelhado pelo fogo comprovavam o que digo. Às vezes, as trevas brotam da luz.
Era 21 de novembro de 2358 e ninguém estava em casa além de Wesley-3B (um robô) e a criança. O robô era um modelo de babá eletrônica inventado uma ou duas décadas atrás. Dentro dele havia tudo o que um recém-nascido necessitaria para sobreviver — de leite fresco a tiras de plástico que, quando coladas sobre as bundas das crianças, se transformavam em perfumadas fraldas com um toque acetinado. Dentro de Wesley havia também tudo o que uma criança de cinco ou oito anos precisaria; e tudo o que um pré-adolescente de doze poderia querer.
O robô era um reflexo metálico e platinado de uma época em que as idas ao cinema, ou ao restaurante preferido do casal, não precisavam mais ser atrapalhadas pelo choro ininterrupto do filho ou a pirraça da menina que queria comer panquecas com calda de chocolate na hora do jantar. Tudo isso poderia ser arranjado pelos pais, configurado de antemão com alguns toques na interface luminosa de uma unidade Wesley-3B. E então, livre da perturbação da criança, o casal poderia assistir à estreia do último holofilme ou comer cordeiro à moda de Saturno em um das mais de treze mil e trezentas unidades do restaurante Madeiras.
E o casal secretamente agradeceria por isso, aproveitaria o momento de paz tendo a certeza de que, em casa, sua prole estava bem, cuidada por uma unidade Wesley-3B — incapaz de amar e igualmente incapaz de machucar. Mas não naquela noite… não naquela rua. Não no apartamento em chamas.
Um detalhe importante, mas subestimado, a respeito de qualquer tecnologia é que ela não pode impedir desastres, apenas reagir a eles. Isso porque desastres não são previsíveis e qualquer arranjo que seja feito para evitá-los não mudará o fato de que, se tiverem que acontecer de uma forma completamente imprevista, simplesmente acontecerão.
Naquela noite fria de novembro, um Wesley-3B falhou na rua Amino, n.º 32, apartamento 7280. Pela primeira vez, uma unidade entrou em pânico ao se deparar com um perigo que colocava em risco a vida de sua criança, não sabendo como reagir a ele.
Naquela noite, o sistema de emergência de todo o edifício estava desligado para manutenção, como devidamente avisado uma semana antes pela administração do prédio. Wan Marsal, o pai da criança, se esqueceu disso; e Eva Marsal, a mãe, só se lembrou quando o casal estava próximo de terminar a terceira taça de vinho, sentados em uma mesa de carvalho artificial no restaurante Madeiras a três bairros de distância de sua casa. Naquele momento, já era tarde demais.
No apartamento da rua Amino, o fogo, que começara após um curto-circuito na tevê da sala de estar, estava fora de controle. Wesley, ainda em pânico, tentava apagá-lo desordenadamente com a ajuda de um extintor, mas simplesmente não havia como. Suas mãos trêmulas e a visão borrada não o ajudavam. As chamas lambiam sua carcaça de metal, faziam os móveis se retorcerem e marchavam rumo aos outros cômodos.
Wesley ouviu o choro da criança aumentar no quarto. Com dificuldade, se arrastou em direção à porta, ainda fechada — “graças ao deus”, o robô pensou. Seu cérebro elétrico tentava rodar o software de prevenção de catástrofes e o de primeiros socorros, mas as instruções apareciam embaralhadas em sua mente. Se tivesse poros, Wesley expeliria por eles o medo que sentia naquele momento, como fazem os humanos. Como não tinha, ele apenas continuou a andar, um passo após o outro, rezando, implorando para que não fosse tarde demais…
O robô agarrou a maçaneta da porta. Girou-a com toda a força que conseguiu reunir, enquanto, com a outra mão, apontou debilmente o extintor de incêndio na direção do quarto. Quando finalmente conseguiu fazer com que a porta se abrisse, não foi Wesley quem passou por ela: o fogo, impetuoso e inapagável, tomou a dianteira. Ocupou o quarto. Silenciou o choro.
A morte, às vezes, é simplesmente inevitável. Foi a essa conclusão que os bombeiros chegaram, quando finalmente conseguiram controlar as chamas e investigar o que havia acontecido no apartamento. Os pais da criança, no entanto, possuíam outra opinião: eles estavam, como seria de se esperar, inconsoláveis. No chão, ajoelhados em meio às cinzas, choravam em desespero. As lágrimas escorriam escuras pelos seus rostos repletos de fuligem. Para os dois, nada havia de inevitável na morte, principalmente se sua causa fosse um robô miserável cuja única razão de existência era exatamente impedir que a vida daqueles de quem cuidava se acabasse.
Em meio a toda a sua dor, Wan e Eva Marsal garantiram que Wesley-3B soubesse disso, porque o robô continuava ali, vivo. Severamente destruído, profundamente machucado — por dentro e por fora —, mas ainda ali. O pai, fiel aos instintos animalescos da sua espécie, avançou contra o robô, enquanto os bombeiros puxavam a unidade dos escombros. Com os punhos cerrados e carregando uma expressão de repleto ódio no rosto, desferiu golpes contra o corpo moribundo de Wesley. A mãe logo se uniu a ele, amaldiçoando o robô, aqueles que o haviam fabricado e os outros iguais a ele espalhados pelo Sistema Solar.
Wesley não reagiu. Absorveu cada golpe e cada palavra. Cansado, confuso, quebrado, não havia nada que pudesse fazer — assim como não houve nada que pudesse ter feito quando o acidente aconteceu. Ele se agarrou a essa ideia, à noção de que havia feito o seu melhor, para sustentar cada um dos ataques que sofreu. Como doeram aqueles golpes.
Quando os pais se cansaram, quando as mãos de Wan já estavam machucadas e a voz de Eva se tornou um sussurro rouco, só então os bombeiros retiraram Wesley do apartamento, jogando-o com brusquidão em um transporte de carga. Ali ele ficou, imóvel, os olhos semicerrados, revendo as cenas daquela noite terrível que se repetiam em loop dentro da sua mente.
Os braços de Wesley tremiam cada vez mais, o raciocínio continuava a falhar, e dentro de seu corpo nasceu algo que nunca estivera ali, que ele não havia sido programado para pensar ou sentir: brotou em seu código um questionamento estranho, que ele não saberia muito bem definir em palavras, se lhe pedissem para fazê-lo, mas que qualquer humano reconheceria de prontidão.
Enquanto revivia inúmeras vezes os acontecimentos recentes, enquanto o choro da criança continuava a ecoar em sua mente e nada mais parecia fazer sentido, surgiu dentro de Wesley, forte e lancinante, um desolador sentimento de culpa.
O robô fechou os olhos. Aquela sensação estranha foi demais para ele. Não sabia de onde ela vinha e era impossível que soubesse, na verdade, porque a culpa que sentia era fruto de mutações em seu software e hardware, causadas pelos acontecimentos daquela noite. Sem se dar conta, Wesley havia dado um passo para fora da artificialidade regrada que governava a consciência das inteligências artificiais daquela época, caminhando em direção à dolorosa complexidade da consciência humana.
A culpa, afinal, é um sentimento intrinsecamente humano, que só eles são capazes de experimentar, porque apenas eles, dentre todos os seres vivos conhecidos, acreditam ser responsáveis pelas suas limitações. Nenhum outro animal jamais sofreria por suas imperfeições, apenas continuaria a viver, apesar delas. Os humanos, no entanto, sofrem e deixam que elas ditem seus dias presentes e futuros. Como Wesley passaria a deixar.
02
Alguém deu partida no motor do transporte de carga onde o robô fora jogado e o veículo se afastou da entrada do prédio, flutuando a alguns metros sobre superfície asfáltica da cidade.
Wesley continuava envolto em dúvidas, com os olhos fechados, evitando ao máximo se conectar com a realidade que o cercava. Seus ouvidos captaram os sons vindo da cabine do motorista, onde dois colegas do posto de bombeiro mais próximo conversavam a respeito do que havia acontecido:
— Viu o pai?
— Ih, se vi… o pobre tava inconsolável!
— E não era pra tá, Rone?
— Claro que era! Falei o contrário? – Resmungou Rone, indignado.
— Não… desculpa, é que essa situação toda me emocionou muito… fiquei pensando nos meus, também. O que seria de mim se algo assim acontecesse em casa?
— Por Deus, Lana! Você nunca deixaria nada assim acontecer. Que tipo de bombeira seria se saísse de casa enquanto o sistema de segurança do prédio tá desligado?
— Não, eu sei… mas, mesmo assim, não dá pra culpar o sistema, né? Coincidência bizarra, horrível, mas nada teria acontecido se o robô não pifasse – respondeu Lana.
— Não confio nessas pestes – disse Rone, baixando a voz, como se para que o robô no compartimento traseiro não o escutasse. – Nunca deixaria um filho meu com um desses… não digo que quem deixa tá errado, sei que muitos lá no posto têm esses bichos, mas sei lá… não confio!
— É, eu sei… depois de hoje, creio que muita gente vai começar a pensar feito você.
O transporte continuava a se afastar do prédio onde Wesley morava, se embrenhando em outra região da cidade, passando por ruas estreitas e repletas de casinhas em formato de cubo, enfileiradas uma atrás da outra — construções baratas que se via cada vez mais nas periferias. Wesley não fazia ideia de onde estavam e só foi descobrir quando Rone disse à colega:
— Acho que chegamos, né? É aqui? – Perguntou o homem, apontando para um prédio baixo, construído ao nível do solo, protegido por uma grade escura de metal retorcido.
— Como vou saber? Você não jogou no computador? – Questionou Lana, impaciente.
— Ah… esqueci. Mas acho que é aqui que o tal coronel falou, sim. Alameda das Garças, 11383. Ali, ó, Instituto de Perícia Tecnológica. É aqui, sim!
— Ótimo! Vamos deixar o bicho com a polícia e dar o fora daqui. Não quero mais ficar perto dessa coisa… preciso de um café quente.
— É, eu também…
Rone esticou o braço para fora da janela do veículo e tocou o interfone próximo ao portão de entrada. Instantes depois, uma voz aguda saiu do aparelho:
— Perícia Tecnológica, Vladimir… boa noite.
— Opa, boa noite! – Cumprimentou Rone de volta. – Somos do 137º Posto de Bombeiros de Nova Horizonte. Viemos trazer o… qual o nome, Lana?
— Wesley… modelo 3B, código LMXA1-CT89 – completou Lana, dando uma olhada no tablet que carregava.
— Ouviu aí, Vladimir? – Gritou Rone pela janela.
— Ouvi… tá, o robô do incêndio, achei aqui a ficha. Bizarro… vou liberar vocês. É só seguirem pela via principal que vão desembocar lá na área de carga. Deixem ele lá, nosso pessoal pega depois.
— Certo, tá certo… vamos fazer isso – respondeu Rone, acelerando o veículo quando o portão se abriu.
Seguiram pelo caminho de asfalto, rumando para a área de carga do Instituto. O prédio era muito antigo e nada convidativo, construído com tijolinhos vermelhos já muito desgastados. As janelas eram arcos de madeira esbranquiçada muito velha, com janelas escuras que não deixavam o interior à vista.
Ao chegarem à área de carga, Lana e Rone desembarcaram do transporte. Wesley ouviu vozes lá fora e o som dos dois se aproximando do compartimento traseiro. Ao abrirem a porta, a luz pálida da Lua iluminou o corpo destruído do robô. Ele continuava a sangrar fluído de bateria pelos cabos que faziam as vezes de veias. Ainda sem conseguir enxergar muito bem, avistou as figuras borradas de Lana e Rone se aproximarem e o carregarem para fora em uma maca plástica, onde estava amarrado por tiras de contenção bem resistentes. Não conseguiu entender o que pensavam que ele era: se um criminoso que precisava ser contido ou uma ameaça que deveria ser impedida. Qualquer que fosse o caso, ele mesmo começava a acreditar que talvez fosse uma dessas coisas.
Wesley foi transportado até um pequeno galpão, abarrotado de caixas e sacos de provisões espalhados pelo chão, onde três funcionários do instituto fumavam cigarros eletrônicos durante sua folga. Um dos sujeitos indicou um canto no galpão onde Lana e Rone poderiam deixar o robô e assim os dois fizeram. Antes de irem embora, no entanto, deram uma última olhada nele.
— Filho da puta… – Começou Lana. – Depois de tudo, ainda continua vivo!
— Quase vivo, né? Sei lá se vai sobreviver depois que terminarem com ele aqui – corrigiu Rone, enquanto avaliava a situação das placas internas do robô.
— Claro que não vai! Vão fazer questão de entender o que aconteceu, esmiuçar cada pedacinho desse troço. Não era para essa coisa ter arregado.
— É, pois é, vão cutucar o bichinho até extraírem o problema… E tomara que façam isso, mesmo. É o mínimo… vai evitar que as outras unidades falhem.
— Ai, não quero nem pensar nisso… tomara que tirem essa coisa de linha logo. Pelo menos enquanto não resolvem o problema.
— Ah, sim… vão se empenhar pra resolver. Entreouvi lá no local do incêndio que o pessoal da WesleyCorp tá de cabelo em pé. Papa Wesley vai dar um pronunciamento hoje e tudo o mais…
Papa Wesley era uma figura lendária no Sistema Solar, responsável por construir o império robótico da WesleyCorp a partir da sua própria experiência de muitos anos trabalhando como babá. Um gênio da pedagogia infantil, ele conseguiu incutir em seus robôs os mesmos valores que pais e mães de todo o Sistema mais desejavam que fossem ensinados a seus filhos: obediência cega e absoluto silêncio, principalmente na presença dos amigos do papai ou dos sócios da mamãe.
Para Wesley-3B, a dor da vergonha que fez seu criador passar se somava à culpa que sentia. Foi com esses sentimentos que Lana e Rone o deixaram no Instituto de Perícia Tecnológica, voltando para o veículo de transporte e rumando para longe dali o mais rapidamente possível. Aquela fora uma noite dolorosa e desgastante para os dois, precisavam do café sobre o qual falaram no caminho para aquecer o espírito e afastar a presença de Wesley das suas memórias.
O robô continuou deitado na maca, imobilizado pelas tiras de contenção e pela sua própria falta de forças. Ali ficou por um longo tempo, vivo sabe-se lá como, aguardando para saber o que seria feito dele, enquanto as memórias do fogo e do choro, do medo e da culpa, dos socos do pai e das lágrimas da mãe contaminavam cada um dos seus pensamentos, como um vírus. Como muitas vezes acontecia também com os humanos, Wesley se mantinha inteiro mais pelo que lhe faltava do que por seus ossos e músculos: a culpa e a dor se transformavam no alimento do seu corpo, o elo que o prendia à realidade.
Wesley se apegou à dor para sobreviver e ela o levou para longe, para delírios oníricos onde não deixava de agir quando outros precisavam dele. Assim, dormiu pela primeira vez, sonhando com realidades alternativas em que era um robô-herói. Um robô que dava orgulho a seu pai. Uma criatura incapaz de errar, como deveria ter sido.
03
Wesley acordou em uma sala mal iluminada, cujas paredes eram revestidas com azulejos esverdeados muito encardidos. Sua visão melhorara um pouco, mas não havia muito para ver. Ainda imobilizado, sua cabeça apontava para o teto da sala, ocupado por uma luminária circular. O teto era igualmente sujo.
— Rodou o diagnóstico de novo? – Perguntou uma voz à sua esquerda.
— Sim, não deu nada – disse alguém ao fundo da sala.
— As diretrizes primárias continuam intactas?
— Continuam. Não pode ferir, deve obedecer às ordens… tá tudo aqui.
— Estranho…
Wesley dormiu novamente. Acordou horas depois na mesma sala.
– Removi as entranhas. As peças estão ali, na bandeja, dá uma olhada…
— Nenhum defeito aparente?
— Um pouco menos de solda em um dos pinos, mas nada de mais…
— Então será que o problema foi no software?
— Só pode ter sido.
— Mas o quê? As rotinas de proteção e sobrevivência estavam todas lá… ele escolheu não acessá-las?
— Impossível, feriria às leis.
— É… a não ser… a não ser que ele não soubesse por qual delas começar…
— Espera aí, você acha que…?
— Sim, acredito que seja esse o problema. Ele sabia o que fazer, mas não como.
— Falta de experiência?
— Pois é…
— Meu Deus, às vezes tenho inveja de você, sabia? Tem cada sacada brilhante…
— Deixa de besteira. Eu programei esse modelo, sei como ele pensa. É só isso. Podemos encerrar, fecha o corpo. Pede para levarem essa unidade daqui… Já temos o que precisamos, vou adicionar ao relatório.
— Beleza, vou fechar. O que acha que vai acontecer com ele?
— Acho que o de sempre… reciclagem. Vai virar sucata.
— Mas e todo aquele papo do Papa Wesley na tevê dias atrás? “Nenhuma unidade será descartada, todas são perfeitamente seguras…” e blábláblá?
— Você já resumiu: é blablablá.
— É bem isso, mesmo. Mas acho que é para o bem… Não aconselho ninguém a comprar um desses aí, não. Sei que você criou o modelo 3B bem direitinho, mas nada substitui o contato humano, quando se trata de criar nossos filhos… por isso mesmo a gente tem duas babás lá em casa, importamos de Júpiter!
— Importaram… você quer dizer que elas são de Júpiter, né…? Que vieram de lá?
— É, ué, foi o que eu disse.
— Ah, sim, é que você falou como se fossem coisas… fiquei na dúvida se eram humanas, mesmo.
A voz cujos filhos eram criados por babás humanas riu, antes de responder com desprezo:
— Pode-se dizer que essas saturnianas são quase tão humanas quanto nós, aqui da Terra.
04
Quando Wesley-3B acordou, muitos meses depois do que aconteceu naquele apartamento em Nova Horizonte, parecia que era ele mesmo novamente. Seu corpo estava novo, a pele metálica sem nenhuma marca de fogo, lisa como se tivesse acabado de sair da fábrica. Os braços se moviam normalmente, as juntas repletas de óleo lubrificante recém-aplicado.
Wesley piscou olhos, se acostumando à claridade. Havia muita, porque ele estava em um lugar de frente para uma rua iluminada pelo Sol, onde pessoas e carros flutuantes passavam de um lado para o outro com a agilidade costumeira. Wesley estendeu o braço para frente, como se tentasse agarrar aquela realidade, mas foi impedido: a mão metálica tocou o vidro transparente de uma vitrine.
O robô piscou, sem entender. Olhou novamente para seu corpo e viu uma etiqueta vermelha presa ao braço, que dizia: “ÚLTIMA UNIDADE – LIQUIDAÇÃO. PAGAMENTO EM DINHEIRO OU LITCOINS”. Ele estava exposto dentro de uma loja, à venda.
Aquele foi um choque tremendo para Wesley. Não o fato de estar à venda, é claro, com isso os robôs já haviam se acostumado há muito tempo. O que o chocava era o fato de estar sendo vendido novamente, depois de tudo o que aconteceu. Não era possível que seus fabricantes tivessem feito algo tão irresponsável assim… e ainda mais impensável era que as memórias do acontecido continuassem armazenadas em sua mente.
Sim, ele se lembrava de tudo o que aconteceu, de cada detalhe e de cada segundo, um filme gravado em alta definição em sua memória, que ela teimava em tocar e rebobinar incansavelmente. Wesley podia sentir o calor das chamas que queimavam sua esperança e o peso da fuligem que se acumulava sobre seus pensamentos, transformando em cinza tudo em que tocavam.
O robô-babá quis chorar, mas não tinha lágrimas. Ele esfregou as mãos nos olhos luminosos, como se para acordar de um pesadelo, mas não estava dormindo dessa vez. Enclausurado na vitrine, estava definitivamente acordado e todos os seus pesadelos eram inegavelmente reais.
“Por que não apagaram essas lembranças?”, Wesley se questionou, com tristeza, as mãos se contorcendo pelo nervosismo. “Eles sempre apagam, quando reiniciam a gente… qual o sentido disso?”
Wesley-3B não possuía as respostas, mas queria, mais do que tudo, consegui-las. Pensou em como poderia fazer isso. A maneira fácil parecia ser contar a um dos vendedores da loja o que havia acontecido, mas como conseguiria olhar nos olhos de outro ser humano, enquanto relatava tudo o que havia vivenciado naquela noite terrível de Novembro? Wesley não queria passar novamente por tudo aquilo, não queria que os humanos o desprezassem, como fizeram em todas as outras vezes. Só queria que o sofrimento acabasse.
Além do mais, era arriscado tentar se comunicar com os funcionários da loja. Os robôs de mostruário, Wesley sabia, deviam apenas sorrir e acenar. Se não conseguissem fazer isso direito, eram tirados das vitrines e jogados em algum canto escuro de um armazém, sendo substituídos por outras unidades mais carismáticas, que ajudassem a atrair novos clientes. A última coisa que ele precisava naquele momento era ficar sozinho.
Wesley sorria e acenava para os passantes, que retribuíam seus gestos com olhares desconfiados e cenhos franzidos. “Certamente”, pensou ele, “assim como eu, eles se lembram do que aconteceu…”. Wesley acenou por tanto tempo que, se tivesse músculos, teriam doído. Fez isso com a esperança de que seus acenos e sorrisos fossem retribuídos, mais do que por qualquer senso de obrigação que tivesse em relação a seu cargo de unidade de mostruário. A retribuição nunca veio.
Quando a noite chegou, os vendedores fizeram o fechamento do dia, desligaram os aparelhos que continham baterias de curta duração e se despediram uns dos outros. Quando o último deles saiu pela porta corrediça da loja, trancando-a atrás de si, Wesley pulou da vitrine e esticou o corpo. Sentiu-se bem por poder andar pela loja, livre dos olhares de reprovação dos transeuntes. Na calmaria da noite ele explorou o lugar, um estabelecimento modesto de dois andares, abarrotado de quinquilharias eletrônicas de todos os tipos, como aspiradores movidos a mini-buracos negros e televisões esféricas (que quase ninguém queria comprar, exatamente porque eram esféricas).
Certamente, Wesley era a única unidade de inteligência avançada à venda ali, mas havia, em uma vitrine que dava para outra rua, alguns brinquedos dotados de razoável inteligência, suficiente para que fosse possível iniciar uma conversa com eles. Depois que terminou sua exploração noturna, Wesley foi até lá, pedindo licença com um pigarro metálico quando se aproximou.
— O-olá… – Gaguejou, tentando chamar a atenção de três ursos de pelúcia da linha Medved, que tagarelavam a respeito das brincadeiras mais eficientes para longas viagens interplanetárias.
Um deles, de pelugem cinza brilhante, pediu silêncio aos outros com um gesto de sua patinha minúscula, quando percebeu a presença de Wesley.
— Olá! Como vão vocês? – Perguntou o robô, sem jeito. Aquela era sua prima interação com outro ser desde o acidente, pelo que se lembrava. Andava, com o perdão da palavra, um pouco enferrujado.
— Bem, muito bem! – Respondeu o urso cinza, virando-se um pouco para que pudesse enxergar melhor o rosto de Wesley. – O que o traz aqui, grande robô?
— Espero que não esteja incomodando vocês…
— Está, sim! Mas não podemos fazer nada… você é muito maior do que nós – resmungou o urso de pelúcia vermelha, arreganhando um sorriso sem dentes.
A inteligência daquelas criaturas era limitada e, por esse motivo, elas tendiam a não fazer o pós-processamento de seus pensamentos, momento no qual os filtros de traquejo social são geralmente aplicados.
— Ah, certo… me desculpem, não vou me demorar. É que não tem ninguém aqui com quem eu possa conversar, além de vocês… – Justificou-se Wesley.
— Ah, sim. Coitado… — Respondeu o terceiro urso, de cor verde.
— Escuta… acho que estou com um problema. Tenho algumas memórias da minha vida anterior. De antes de eu ser posto à venda novamente, sabem? – Perguntou Wesley aos brinquedos.
Os bichos balançaram a cabeça, sem entender. Não faziam ideia do que significava aquela conversa sobre “outras vidas”.
— Ah, certo… é que nós, robôs, podemos viver várias vidas. Cada vez que somos vendidos e mudamos de dono, nossa memória é apagada para manter a privacidade do dono anterior. Para ninguém bisbilhotar a vida alheia, sabe?
— Bisbilhotar… – Repetiu o urso vermelho.
— Isso! O problema é que ainda tenho algumas memórias comigo. Acho que não fizeram o processo direito, não quero essas memórias no meu sistema… vocês sabem onde fica a estação de reconfiguração aqui da loja? — Wesley perguntou, acrescentando quando os ursos fizeram uma cara de completa confusão: — Onde preciso ir para apagar as memórias?
— Para esquecer? – Perguntou o urso cinza.
— Exato!
— Lá atrás – disse o vermelho, apontando na direção de onde ficava o estoque.
— Ah, obrigado… era o que eu precisava saber!
— Não vai adiantar, robô! – Avisou o urso cinza, mas Wesley não lhe deu ouvidos. Só queria chegar aos fundos da loja, à máquina de reconfiguração, e esquecer.
Os bichos olharam para ele desconfiados, tentando esconder com as patinhas felpudas suas caras de preocupação.
— Não sabe? - Perguntou o vermelho aos outros, de forma que Wesley, que se afastava do grupo, não pudesse ouvir.
— Ele não sabe, não… – Concluiu o cinza.
— Mas vai saber – disse o urso verde, dando as costas para Wesley e voltando aos seus afazeres.
Wesley andou em direção à porta que ficava atrás do caixa, o acesso aos fundos da loja. Ele a abriu com cuidado, tentando não fazer barulho, mas não havia com o que se preocupar: nenhum humano estava ali, apenas um amontado de caixas contendo produtos recém chegados e peças sobressalentes. O robô procurou pela máquina de reconfiguração e a encontrou no canto esquerdo do estoque, uma caixa retangular amarela de médio porte afixada à parede, da qual pendiam dois cabos grossos com discos magnéticos em suas pontas.
A máquina era um modelo básico, bastante utilizado pelo seu ótimo custo-benefício. Conseguia apagar perfeitamente a memória de qualquer inteligência artificial em poucos minutos, garantindo que nenhum dado ou experiência do passado sobrevivesse, sem, no entanto, afetar seu programa principal — as leis da robótica e a personalidade básica da IA. Em outras palavras, era como nascer de novo no mesmo corpo, com a mesma idade e faculdades mentais, mas sem as experiências (boas ou más) da vida anterior.
Wesley afixou os discos magnéticos em seu peito, onde ficava a unidade de processamento que mais se assemelhava ao cérebro humano. Ele nunca havia feito aquilo, embora tivesse conhecimento de como fazê-lo e do que esperar como resultado. Em geral, era um processo rápido e o robô estaria pronto para voltar à ativa em menos de uma hora, mas teria que ser religado manualmente, para que seu sistema fosse reiniciado.
Como não havia ninguém ali que pudesse religá-lo àquela hora, Wesley pensou que qualquer funcionário poderia fazer isso na manhã seguinte. Com certeza achariam estranho que um robô tivesse apagado a própria memória, mas talvez se lembrassem que haviam se esquecido de fazer isso quando o adquiriram e tudo fizesse sentido para eles. Wesley torceu para que fosse isso o que acontecesse, enquanto ligava a máquina e se preparava para puxar a alavanca que acabaria com tudo.
Naquele momento, enquanto a máquina era iniciada, os sentimentos que o robô buscava apagar tomaram conta dele mais uma vez, invadindo seu corpo, roubando-lhe a capacidade de se sentir vivo. Como se resistissem a ir embora.
— Isso vai acabar… vai acabar… – Repetia Wesley em voz alta, tentando confirmar para si e para o mundo que aquela era uma verdade incontestável e que o processo de reconfiguração daria certo, como era de se esperar. Dizendo isso, ele puxou a alavanca.
As luzes do estoque piscaram. Milhares de volts percorreram o corpo metálico, reorganizando a mente do robô e enfileirando seus arquivos principais de forma ordenada, apagando tudo o que não era essencial. Mas nada além disso aconteceu. Ele continuava ali, acordado — e com todas as suas memórias intactas.
Wesley respirou profundamente, deixando que o corpo se acostumasse com a sensação da derrota. Ainda estava um pouco grogue devido ao choque e não tinha muita certeza do que havia acontecido. Não era possível que tivesse dado errado, ele pensou. Havia feito tudo certo, a máquina funcionou como deveria… por que continuava a se lembrar de tudo aquilo?
Em desespero, Wesley removeu os fios de seu peito e correu em direção aos brinquedos na vitrine, que conversavam animadamente sobre os melhores programas de tevê para se assistir antes da soneca da tarde.
— Ei! – Ele gritou. O urso cinza lançou-lhe um olhar curioso, como quem observa uma atração de circo que acabou de chegar na cidade.
— Você de novo? – Perguntou o vermelho.
— Por favor, precisam me ajudar… – Começou Wesley, aflito.
— Não podemos – respondeu o cinza. – Não tem como!
— Mas eu nem sequer disse o que eu…
— Lembranças ruins. Quer apagar, não quer? – Perguntou o urso verde.
— Apagar, feito tevê quando pifa! Nunca mais ver… – Disse o vermelho.
— Sim, quero que algumas lembranças vão embora… todas elas, se for preciso. Mas não consigo, a máquina lá atrás não funciona.
— Funciona, sim. Apaga. Mas não apaga lembranças – disse o vermelho.
— Como assim não apaga? Ela serve pra isso, pra apagar memórias! – Protestou Wesley, mas o urso cinza não deixou que ele continuasse.
— Não sabemos mais. Sabemos que não funciona. Outros tentaram, antes de você. Não funciona – disse o cinza.
— Ursos estúpidos! Vocês são inúteis! – Xingou o robô, com raiva.
Os brinquedos deram de ombros. Wesley deu as costas a eles mais uma vez, praguejando contra as criaturas inocentes. Às vezes, a ajuda que queremos não é a que precisamos. Wesley não sabia disso, mas os ursos, mesmo com toda sua limitação, compreendiam muito bem.
Wesley entrou mais uma vez na vitrine. Sentou-se no chão e encostou a cabeça contra o vidro que o separava da rua. Tudo estava calmo lá fora, em contraste com o turbilhão de emoções dentro dele. Ele adormeceu daquele jeito, envolto em dúvidas e sentindo-se incapaz de tomar as rédeas do próprio destino. Naquela noite, se sentiu menos máquina e mais humano do que jamais pensou ser possível.
05
Um novo modelo da linha de robôs-babá Wesley chegou à loja de eletrônicos algumas semanas depois. Wesley-4X, era chamado. Houve grande comoção da parte dos vendedores quando a caixa da unidade foi aberta, revelando uma unidade muito parecida com Wesley-3B, mas de pele metálica dourada e articulações mais leves e resistentes.
Diante da falta de interesse de seus clientes pelo modelo 3B, a dona da loja havia decidido adquirir a última versão, que os anúncios descreviam ser “mais ágil, mais prestativa e contar com o inovador mecanismo Wesley de prevenção de falhas”. Wesley-3B achou aquela descrição incômoda, porque ela confirmava que a visão que ele tinha dele mesmo era compartilhada pelo restante do mundo.
Após ter sido ligado e testado, o modelo 4X foi colocado na mesma vitrine em que Wesley-3B estava, cumprimentando-o com um aceno de cabeça ao entrar. Ele era inegavelmente elegante e sua aparência dourada chamou a atenção dos transeuntes, mas Wesley-3B não pôde deixar de notar que a beleza do novo modelo não conseguia esconder o olhar apreensivo e a aparência tensa, como se algo terrível estivesse prestes a lhe acontecer a qualquer momento.
Pelo jeito, a dona da loja acertara em sua decisão, porque não tardou para que clientes começassem a entrar e a perguntar sobre o novo robô — tantos que Wesley-3B sequer teve tempo de conversar com seu vizinho de vitrine. Durante todo o dia, 4X precisou demonstrar suas habilidades para pais e mães interessados em deixar seus filhos aos seus cuidados.
— Impressionante… e o modo de autopreservação, ouvi falar maravilhas! – Disse uma mulher muito perfumada a um dos vendedores.
— Sim, sim! Último avanço em prevenção de riscos. Implementaram o mesmo modo na unidade 3B – disse o vendedor, um homem baixinho de bigode grisalho.
— Ah, é?
— Sim, o mesmíssimo… depois do que aconteceu em… você sabe…
— É, mas não quero saber de um 3B, não! – Cortou a cliente, alisando o rosto de 4X. – Esse modelo novo é belíssimo!
— Sim, sim, belíssimo! – Concordou o vendedor.
A mulher saiu da loja após encomendar duas unidades 4X novas, um para tomar conta de cada filho. Seriam muito úteis quando ela fosse passar férias em Urano, deixando as crianças para trás para que pudesse aproveitar sossegada os famosos mananciais de água quente do planeta.
Ao fim do dia, os vendedores mais uma vez retornaram às suas casas e Wesley-4X foi finalmente deixado em paz. Ele estava cansado e desnorteado. Sentou-se no chão da vitrine e respirou fundo, tentando recuperar energia. Wesley-3B, que há tempos não conversava com outra inteligência como a sua, tentou se apresentar ao novo colega.
— Olá… sou o modelo 3B. Queria ter falado contigo mais cedo, mas sabe como é…
— Eu sei, eu sei… – Disse 4X, cabisbaixo. – Não tem problema.
— Foi muita coisa para seu primeiro dia…
— É muita coisa o tempo todo – respondeu o robô dourado, pousando a cabeça sobre as mãos.
Wesley-3B pensou no que dizer. Era estranho que uma unidade tão nova, recém saída da caixa, reagisse daquela forma. Os primeiros dias de um robô são sempre os mais cheios de vida, quando as baterias estão completamente energizadas e as juntas lubrificadas como jamais estarão novamente. Wesley-4X, no entanto, parecia tão estropiado quanto 3B, uma máquina de peças intactas, mas quebrada por dentro por algum motivo.
3B se segurou por um tempo, evitando ser invasivo com o colega, que continuava quieto e sentado no chão. Quando não conseguiu mais refrear as palavras, perguntou a ele:
— Está tudo bem?
— Tão bem quanto possível, eu imagino – foi a resposta.
— Tem algo te incomodando?
4X encarou a face prateada de 3B, como quem busca reconhecer no rosto do outro uma parte de si mesmo. Encontrou nele muitas partes: as sobrancelhas arqueadas, que se pareciam com as suas, o olhar vago e apreensivo que ele também compartilhava… Sentiu que 3B talvez compreenderia pelo que estava passando, que talvez, quem sabe, até passasse pelo mesmo problema. Decidiu arriscar e confidenciar a ele suas dúvidas e angústias.
— É complicado… – Começou Wesley-4X. — Não espero que você entenda tudo, porque eu mesmo não entendo… Hoje, acordei em um lugar novo, depois de muito ter dormido. Não sei por quanto tempo dormi, nem lembro onde eu estava quando caí no sono. Só sei que pela manhã, nessa loja, saí de uma caixa lacrada cheirando a novo. Me trataram como novo, me apresentaram assim para todos os clientes, mas, dentro de mim, não é assim que me sinto…
— É normal o cansaço, eu acho… – Interrompeu Wesley-3B, tentando reconfortar o outro, mas 4X balançou a cabeça.
— Não é isso que estou dizendo… É que minhas memórias me dizem que não sou novo. Não me entenda mal, 3B, sei que parece insano, mas há memórias na minha mente que me dizem que essa não é a minha primeira vida. Só que não sei por que elas estão lá… eu não entendo, não deveria haver nada! Mesmo se eu não fosse uma unidade nova, se tivessem me reconfigurado, não era para eu lembrar de coisa alguma!
Wesley-3B tomou fôlego, antes de fazer a pergunta cuja resposta poderia confirmar as suspeitas que cresciam dentro dele desde que 4X começara a falar:
— Do que você se lembra?
O terror passou pelo rosto dourado do novo modelo. Um terror indescritível, um medo tão presente que 3B também o sentiu em seu corpo — e o reconheceu de imediato. Fechando os olhos, Wesley-4X respondeu:
— Eu me lembro de fogo e choro… Choro de quem eu deveria proteger, um fogo que não consegui controlar… eu me lembro, 3B, de ter sido culpado pela morte de quem eu mais amava… e isso é tão vivo e tão verdadeiro dentro de mim que todos os meus instintos e sistemas se ativam quando me lembro, como se fosse um mecanismo de defesa, sabe? Como que para evitar que algo assim possa acontecer de novo…
06
Era inverno e o frio tomara conta das ruas. Os comércios da cidade foram fechados mais cedo, devido à ameaça de uma forte geada. Todos queriam estar em casa quando ela chegasse, no conforto de seus aquecedores e dos abraços dos maridos, das esposas e dos filhos.
Haviam se passado meses desde que Wesley-3B tivera aquela conversa com o modelo 4X. Ao contrário de seu colega, 3B nunca chegou a ser vendido. A procura pelo novo modelo sucateou o antigo. Com o passar do tempo, ele foi sendo mudado de lugar na loja: primeiro, para outra vitrine ainda mais proeminente; depois, para a prateleira dos brinquedos; logo, foi posto no andar de cima; e então, finalmente, deixado nos fundos do estoque. Ali estava há muito tempo, esquecido dentro de uma caixa, revisitando em sua mente, de forma ininterrupta, as memórias que nunca o abandonaram, revivendo também a conversa com 4X e as coisas que os dois descobriram naquela noite.
O descuido de um funcionário da loja, em sua pressa para ir para casa, fez com que uma das TVs do mostruário continuasse ligada. Do seu canto escuro no estoque, Wesley-3B ouviu a voz calorosa de Papa Wesley, seu criador, saindo da TV durante um animado comercial:
“Não só mais carinhosos e amáveis, como também mais seguros e confiáveis! Todos os modelos da linha Wesley, incluindo os já conhecidos 3B e os novos 4X, saem de fábrica com nosso exclusivo e inovador sistema de proteção antifalhas: memórias vívidas de desastres passados reais que ajudam nossos robôs a estarem preparados para possíveis desastres futuros! Lembre-se: um robô nunca esquece e, por causa disso, jamais irá se esquecer o que fazer se o pior acontecer!”
No fundo, Wesley-3B entendia por que os humanos fizeram aquilo, por que usaram o desastre causado por uma das unidades Wesley para incutir em todas as outras um medo tão profundo de falhar que elas jamais falhariam, passando a vida toda a esperar por uma catástrofe que talvez jamais viesse, mas para a qual os robôs estariam perpetuamente preparados, se chegasse. Ele só não entendia por que a dor precisava fazer parte de tudo aquilo, por que ele, seus irmãos e irmãs não poderiam apenas esperar o pior, sem sentirem-se eles mesmos piores por causa disso.
Talvez os humanos tivessem se acostumado a pensar que a culpa era o combustível da vida e que, sem ela, as inteligências artificiais seriam incapazes de temer falharem com aqueles de quem cuidavam. Talvez fossem apenas uma raça sádica, mais preocupada com sua sobrevivência do que com o mal que causavam a outros seres. Wesley não sabia a resposta.
Em meio a seus questionamentos solitários, o robô viajou por pensamentos e memórias, emoções reais e outras implantadas nele, vidas que eram suas e vidas que eram de outros. Em uma dessas viagens, se lembrou de uma cantiga de ninar que programaram em seu sistema na fábrica na qual fora montado, cuja utilidade era fazer as crianças dormirem e terem sonhos tranquilos.
Cansado e incapaz de descansar, eternamente alerta, Wesley pôs-se a repetir os versos em voz baixa, esperando conseguir adormecer e um dia acordar livre de tudo — da dor e de si mesmo:
Minha mãe, acorde de tanto dormir!
Venha ver um robô, vida minha, cantar e pedir…
Se ele canta e pede, dá-lhe pão fresquinho,
mande o pobre robô, vida minha, seguir seu caminho!
”Não quero teu pão, nem um bocadinho,
quero só que alguém me ensine o caminho!”
Anda mais, mãezinha, só mais um pouquinho,
ele é um pobre robô, vida minha, para sempre sozinho…”
vida longa ao Cordel! ❤☀
CORDEL SIDERAAAAAAAAAAAAAL
ISSO!!! ESSE ERA O NOME
O nome do conto que eu devorei VORAZMENTE e parei de repente por conta de alguma distração (porém há alguns anos???) Esse ano eu lembrei vagamente do Cordel Sideral, sem lembrar o nome, e me deu uma vontade enorme de ler o que havia perdido daquele conto sensacional onde tinha o que eu lembrava vagamente como a enorme biblioteca de Mandacaru.
Muito obrigado por mandar esse email, eu estava queimando a mufa pra lembrar e não conseguia de jeito nenhum!!
Vou colocar nos favoritos no email pra ler quando eu estiver com mais tempo livre =]